Rita Carmo
"A fotografia vive das entidades que retrata"
Não se vê como fotojornalista, mas capta igualmente momentos únicos. Ligada ao universo musical, Rita Carmo, 36 anos, é o rosto por detrás da objectiva que junta artistas tão diversos desde o rock até ao fado. Colaboradora do Blitz há 14 anos, editou em 2003 o álbum fotográfico Altas-Luzes, onde reúne cerca de 200 imagens de uma “constelação” de figuras da banda sonora do nosso dia-a-dia. Do livro, surgiu uma exposição homónima, com direito a digressão pelo país. Com passagem por Coimbra, durante o mês de Novembro, preencheu as paredes do Teatro Académico de Gil Vicente (TAGV), com cores, refrões e olhares curiosos.
O que te fez escolher a arte fotográfica entre tantas outras artes?
Não escolhi, foi por mero acaso. Estava a tirar um curso na Faculdade de Belas Artes, em Lisboa, e convidaram-me para fotografar no Blitz. Já fotografava por brincadeira, mas foi assim que comecei a fotografar como profissional. Não foi uma escolha, aconteceu. Nem pensei, na altura, que viesse a ser uma profissão a sério.
O que é que te atrai nessa arte?
O facto de não depender de outras pessoas, nem de meios complicados para fazer e acabar o produto – a concretização está nas minhas mãos. Gosto de lidar com pessoas. Aliás, fotografo apenas pessoas. É importante também a coerência estética, para além da parte da informação necessária e inerente ao factor jornalismo. Daí não me ver como fotojornalista.
És independente por natureza?
Sim. Sou dependente das pessoas de quem gosto, apenas.
Começaste por fotografar Moda. Como se deu a transição para o meio musical?
Nunca fui fotógrafa de Moda. Começou, porque estava fazer um curso de Moda. Nunca com a intenção de fazer roupa, mas de ser ilustradora ou algo ligado à área, como a fotografia. Mas fui logo para a música! (risos)
Porquê? A música era um meio mais completo?
A Moda tem um circuito muito fechado e específico, já tem as pessoas necessárias para funcionar. Há bons fotógrafos de Moda, em Portugal. Nunca me arriscaria a enveredar por essa área, porque não acho que fosse trazer nada de excepcional. O meu interesse pela Moda era relativo ao tecido, à matéria, e não ao seu meio envolvente. Gosto de ver a Moda e percebê-la, mas o meio em que se insere – em termos sociais e económicos – não me interessa muito.
Pensas que o jornalismo musical é ainda visto como um jornalismo menor?
É um jornalismo à parte. Noto que os meus colegas – tanto do escrito como da fotografia – trabalham nas várias áreas. A música, para eles, ou é um divertimento ou é uma grande chatice. Não é menor, apenas diferente. Tem uma mecânica muito específica.
O que fotografas mais, para além da música?
Nada. (risos) Mas a música não são só concertos. Fotografo o “espectáculo” – dança, performances, teatro...
“A pessoa é já uma estrela que faz a fotografia”
Vês a fotografia como um ser individual ou como objecto que precisa de um protagonista?
Claro. A fotografia é a forma que encontramos de apresentar uma realidade. No meu caso, é raro fotografar pessoas anónimas. Acho que a fotografia vive das entidades que retrata. A pessoa é já uma estrela que faz a fotografia.
Uma fotografia para ser uma boa fotografia depende de quê?
Fugindo do contexto do fotojornalismo, para mim, uma boa fotografia não é inerente àquilo a que se está a mostrar. Acontece-me, diariamente, deitar fora fotografias que não estão tecnicamente bem. Se não, vou arrepender-me mais tarde. Portanto, para mim, é a soma desse conjunto de factores. Não é pelo fulano estar a fazer uma coisa extraordinária – mesmo que tecnicamente esteja tudo mal, esteja desfocado -, que eu não vou aproveitar.
Que elementos relevas na fotografia em si?
Para mim, o enquadramento é muito importante. Aliás, é raro fazer reenquadramentos daquilo que faço, mesmo quando trabalhava em slide. Com o digital, as coisas tornam-se até mais vulgares – é mais fácil uma pessoa tirar a foto e apagá-la. Penso que a iluminação, o fundo, a posição, a expressão da pessoa são muito importantes. A fotografia é um conjunto de várias coisas, não é apenas um retratado, nem apenas um enquadramento.
Preferes o formato analógico ou o digital?
Isso é uma escolha difícil. Eu diria as duas, para situações diferentes. Pela facilidade e porque está, de facto, a evoluir para uma boa parte técnica, escolheria o digital, talvez.
O preto e branco versus cores. Qual a tua escolha?
A escolha, muitas vezes, foi feita porque o Blitz, inicialmente, trabalhava a fotografia a preto e branco. Aí não havia escolha. Depois, comecei a trabalhar em slide e gostei do trabalho a cores. Foi uma boa aprendizagem com o slide, pois é muito exigente. Actualmente, com a facilidade do digital, penso que ficaria melhor a preto e branco. Para não ficar tão carnal, tão realista, posso optar pelo preto e branco. Até elementos como a idade ou a roupa dos artistas são tidos em conta para fazer essa escolha.
Sabemos que gostas de tirar fotos a preto e branco à tua família...
Lá está, o preto e branco transforma a foto numa coisa mais abstracta, em que não somos tanto nós. Gosto de fotografar o pessoal lá de casa dessa forma.
Dizes que tratar as fotografias é uma boa opção. Porquê?
Desde que não se abuse, tratar as fotografias faz parte do trabalho do fotógrafo. Essa é uma das partes boas do digital: não deixar nas mãos das outras pessoas um tratamento que, por vezes, é necessário. Refiro-me a um tratamento de cores – na escolha de um tratamento de cor, também se pode estar a dar um significado diferente à fotografia. Saturá-la mais ou menos. Portanto, misturo as duas coisas. Sei o efeito que a fotografia tem graficamente e a necessidade de uma boa fotografia, em determinadas fases da paginação.
“É arriscado editar livros em Portugal”
Relativamente ao teu livro, Raquel Pinheiro disse que se tratava de “uma obra arriscada, mas plenamente justificada, tendo em conta esta edição livreira dedicada à música em Portugal”. Concordas?
Acho que é arriscado editar livros em Portugal. Geralmente, numa livraria, apenas encontras o que está a ser editado no momento – tanto que, hoje em dia, dificilmente encontras o meu livro à venda. É um risco, pois os livros para nós, portugueses, são caros. No caso de um livro de fotografia, com a quantidade de páginas que tem, é um risco ainda maior. É um objecto caro de produzir. Creio que tive alguma sorte no meio disto tudo.Trabalhas no Blitz desde 1992. Como vês as publicações culturais em Portugal?
Em termos de edições culturais, há edições lindíssimas e muito bem redigidas. Contudo, acabam por ser edições de luxo. Fez-me alguma impressão ter visto, ao longo destes anos, o declínio das publicações em geral. Houve muitas publicações que abriram e acabaram, de imediato. Nunca pensei que fosse, precisamente, o Blitz o sobrevivente e que crescesse como cresceu. Entristece-me que isto aconteça. Não sei se está ligado ao declínio da área da música em si. É grave não haver uma concorrência mais aberta.
Afirmas que és “um bocado teimosa” e que “não te cansas de lutar para que a imagem tenha a mesma força do texto”. Na tua exposição no TAGV, as fotografias não têm texto. A palavra perde a importância perante a imagem?
Não. Neste caso, foi uma casualidade, pois estas fotografias têm texto. Foram retiradas do livro que editei – Altas-Luzes –, onde há textos. Quem os fez foi o Miguel Cadete, que resolveu, por sua opção – e eu dei-lhe carta branca para ele optar como quisesse –, colocar artistas com texto e outros não. Na exposição, porém, seria estranho que, de quarenta fotografias, três ou quatro não tivessem texto. Poder-se-ia pensar que se tratava de uma gralha ou que as legendas teriam caído, o que não era o caso.
O livro tem cerca de 200 imagens. Na exposição, são 35. Como procedeste à selecção?
A selecção foi feita por gosto, em conjunto com o Miguel Cadete. Muitas fotografias do livro que estão na exposição nem foram escolhidas por serem boas, mas sim porque se trata de um artista importante. No livro, porém, a escolha prendeu-se, não só com a parte estética, como também pela parte de poder ilustrar a música. Na exposição, isso não faria muito sentido, visto que tentei ser mais equilibrada entre retratos, concertos, artistas portugueses e estrangeiros, de forma a não deixar ninguém mal. Além disso, tratou-se também de uma questão estética, através de uma escolha minha, pessoal.
“Nem sempre os fotografados são os melhores críticos”
Sabemos que és uma grande fã dos Radiohead, por exemplo... Tentas conjugar os teus gostos musicais com os concertos a que vais, em trabalho?
Aqueles de que gosto vou, e aos que não gosto, também (risos). Não costumo fazer escolhas. Tenho pena quando falho concertos de que gosto. Embora, se a Madonna tivesse vindo cá e eu não tivesse podido fotografá-la, ficaria, igualmente, triste. Porém, fui, não gostando especificamente da música. Admiro-a como artista. Muitas vezes, nem tem a ver com a música que eles fazem, mas com os artistas em si, porque são muito fotografáveis, muito fotogénicos. Como exemplo, a fotografia dos Slipknot não foi feita em serviço. Fui fotografá-los por minha auto-recriação. Curiosamente, dos artistas de que mais gosto, em termos musicais, nem todos são muito fotogénicos.
Fotografas artistas de diversos estilos. Captados pela mesma lente, essa diversidade une-se?
Precisamente. Tento que a união da diversidade seja o que eles fazem: a música. Por exemplo, Moonspell e Sérgio Godinho não têm comparação. No entanto, respeito-os da mesma forma, no sentido em que ambos fazem arte. Quando os reúno no meu trabalho, espero conseguir isso mesmo. É um desafio.
Como costumas proceder nas sessões fotográficas? Contactas com os artistas para poderes ter um conhecimento mais aprofundado?
Não é muito habitual um fotojornalista combinar o que quer que seja com o artista. Normalmente, acompanha o jornalista e faz as fotografias de circunstância. Comecei a achar que os músicos, como não são oradores por excelência, não deveriam ser fotografados a conversar. Daí, a partir de uma certa altura, ter começado fazer retratos. Assisto à entrevista, mas não faço fotografias em simultâneo. Como já estou nisto há um tempo considerável, chego a ser o elo de ligação entre artistas e jornalistas. Com os artistas portugueses, explico o que quero fazer, por vezes... Outras vezes não, é tudo mais espontâneo. Conheço-os através dos discos e tento perceber o que estão a fazer de diferente. Até porque já fotografei alguns várias vezes. Inclusivamente, tenho agora um novo projecto – na Blitz – que implica produções de maior dimensão.
Costumas partilhar as tuas fotos com as estrelas e receber o feedback delas?
Com os estrangeiros, não. É raro esse contacto. Por acaso, acontece, de vez em quando, levar comigo o Altas Luzes, quando vou fotografar algum artista. Ao autografarem, alguns artistas deixam lá as suas impressões sobre as fotografias. Penso, muito sinceramente, que nem sempre os fotografados são os melhores críticos, porque não têm distanciamento para apreciar. Claro que gosto de saber que o livro já passou por vários artistas e que eles gostaram do resultado.
“Não tenho consciência se fiz uma fotografia publicável ou não”
O Blitz passou a ter uma periodicidade mensal, em formato de revista. Continuas a trabalhar unicamente para lá?
Não, agora já não. Por razões económicas, trabalho para o novo projecto que referi há pouco, que se vai alongar por dois anos. Além disso, tenho fotografado artistas para trabalhos deles, quer seja para cd’s, dvd’s ou promoção.
Em Junho de 2005, a convite da Alcatel Portugal e da Número, participaste no 4º Festival International des Arts et Culture Portugaise em Paris. Como surgiu a colaboração com a Alcatel?
A minha colaboração com a Alcatel começou por um acaso. O Blitz propôs um calendário a patrocinadores e eu, que na altura estava a tratar de detalhes gráficos no Blitz, propus à Alcatel um novo calendário de artistas portugueses. A Alcatel tem uma relação estreita com a música e acarinha imenso os músicos portugueses, logo gostou da ideia. Juntei fotografias que já tinha feito nesse ano e outras que fiz especificamente para este fim. Eles gostaram e propuseram expor essas fotografias nesse Festival.
Mantém-se, a colaboração?
Sim. A partir daí, formou-se uma ligação muito estreita com a Alcatel. Proponho-lhes projectos, eles gostam e apoiam-me, como é o caso da secção que está na revista Blitz.
Sendo fotógrafa, captas momentos únicos. Sentes, naquele instante, essa unicidade?
Não. Agora, com o digital, é mais fácil ter a consciência do que faço, porque a concretização da imagem é imediata. Quando faço sessões fotográficas, é diferente. O resultado estará perto daquilo que imaginei previamente. Num concerto, não é assim tão linear. Não tenho consciência se fiz uma fotografia publicável ou não.
Entre-Vista: Ana Beatriz Rodrigues e Marta Poiares
Foto: Tool, Pavilhão Atlântico - por Rita Carmo